Mulher de 69 anos com dor crônica posterior no calcâneo. Solicitada ressonância magnética (RM) do tornozelo.
Figura 1 (a-b): Imagens de RM no plano sagital nas ponderações T1 (1a) e T2 (1b) com supressão de gordura (SG).
Figura 2 (a-b): Imagens de RM no plano transversal na ponderação DP sem (2a) e com (2b) supressão de gordura (SG).
Figura 3 (a-c): Imagens de RM no plano coronal na ponderação DP SG.
Descrição dos achados
Figura 1 (a-b)’: Imagens de RM no plano sagital nas ponderações T1 (1a') e T2 (1b’) com supressão de gordura (SG) mostrando o tendão de Aquiles espessado e com sinal heterogêneo na porção distal (seta amarela), por tendinopatia insercional, em associação com edema ósseo subjacente à porção posterossuperior do calcâneo proeminente (seta branca) e a bursite retrocalcânea (seta azul) e retroaquilea (seta verde). Estes achados estão em correspondência com o marcador cutâneo (ponta de seta) posicionado no local doloroso referido pela paciente.
Figura 2 (a-b)’: Imagens de RM no plano transversal na ponderação DP sem (2a’) e com (2b’) supressão de gordura (SG) mostrando as bursites retrocalcânea (seta azul) e retroaquilea (seta verde) e a alteração do sinal na inserção do tendão de Aquiles (seta amarela).
Figura 3 (a-c)’: Imagens de RM no plano coronal na ponderação DP SG mostrando a bursite retrocalcânea (seta azul) e a alteração do sinal na inserção do tendão de Aquiles (setas amarelas).
Discussão
A síndrome de Haglund foi descrita pela primeira vez pelo ortopedista sueco Patrick Haglund (1870-1937) em 1927. É também conhecida como doença de Haglund, exostose retrocalcaneal, deformidade de Mulholland e “pumb bumb” (termo que se refere à proeminência na superolateral à inserção do tendão de Aquiles).
Acomete geralmente adultos de meia idade, sendo mais comum em mulheres, e costuma ser bilateral na maioria dos casos.
É uma condição dolorosa do retropé que consiste em uma combinação de sinais clínicos e radiológicos que compõe a seguinte tríade:
Deformidade de Haglund (proeminência óssea anormal na margem posterossuperior do calcâneo)
Bursite retrocalcânea
Tendinopatia insercional de Aquiles (calcânea)
A proeminência óssea posterossuperior anormal no calcâneo causaria irritação nas estruturas locais pelo impacto e atrito repetitivo na bursa retrocalcânea entre o tendão de Aquiles e a deformidade de Haglund, levando ao espectro de achados dependendo da cronicidade dos sintomas. A deformidade de Haglund pode predispor e levar à síndrome de Haglund, mas sua presença não implica necessariamente na síndrome, podendo ser apenas um achado radiológico assintomático. Da mesma forma, pode existir tendinopatia calcânea e bursite retrocalcânea isoladas ou em conjunto na ausência de deformidade de Haglund.
A etiologia da síndrome de Haglund ainda não está totalmente compreendida, sendo geralmente de causa idiopática, mas existem possíveis causas ou fatores predisponentes, como encurtamento do tendão de Aquiles, uso de sapatos de salto alto, excesso de corrida e alteração na biomecânica do pé, como no pé cavo e alterações que levam a desalinhamento da articulação subtalar.
Alguns autores fazem distinção entre a síndrome de Haglund e a tendinopatia insercional cálcica do Aquiles, considerando que a característica básica da deformidade de Haglund é a ausência de sintomas à palpação do tendão de Aquiles, com a dor localizada superolateralmente à sua inserção, acometendo principalmente mulheres entre 20 e 30 anos. Já a tendinopatia insercional cálcica do Aquiles acometeria indivíduos de meia idade e a dor seria mais inferior, junto à inserção tendínea, onde se observam entesófitos e calcificações. Entretanto, a síndrome de Haglund costuma cursar com tendinopatia de Aquiles, tornando essa distinção questionável devido à grande sobreposição dos achados.
O quadro clínico consiste em dor na região da inserção do tendão de Aquiles (geralmente quando o paciente começa a andar depois de um período de repouso e na dorsoflexão máxima), muitas vezes associada a edema e eritema local. A dor costuma ser causada pelas alterações inflamatórias junto à inserção do tendão de Aquiles, como a bursite retrocalcânea e a paratendinite.
O diagnóstico pode ser feito pelo exame físico quando a deformidade é visível como uma protuberância na porção posterossuperior do calcâneo (figura 4).
Figura 4: Paciente com deformidade de Haglund bilateral, identificada no exame físico como protuberâncias na face posterossuperior do calcâneo (setas).
O exame de imagem de escolha na avaliação inicial da síndrome de Haglund é a radiografia dos pés com carga na incidência em perfil, o que costuma ser suficiente na maioria dos casos.
Existem alguns critérios objetivos para avaliar a síndrome de Haglund, ressaltando que não existe correlação direta com os sintomas, devendo ser valorizados de acordo com o quadro clínico e a presença dos outros achados que caracterizam a síndrome de Haglund.
Achados radiográficos da síndrome de Haglund:
Proeminência do processo posterossuperior do calcâneo.
É comum haver confusão entre a porção superior da tuberosidade do calcâneo normal com a proeminência óssea excessiva anormal (figura 5).
Figura 5 (a-b): Radiografias do tornozelo em perfil de pacientes distintos, um com tornozelo normal (5b), mostrando a porção superior da tuberosidade do calcâneo (seta branca) e outro apresentando deformidade de Haglund (seta amarela), caracterizada como uma proeminência óssea excessiva (5b).
Foram descritas formas de análise objetiva da deformidade de Haglund, as mais utilizadas sendo a "parallel pitch line" e os ângulos de Fowler e Philip, Chauveaus-Liet e, o recentemente descrito, ângulo de BRINK:
"Parallel pitch line", que considera anormal quando a proeminência óssea posterossuperior do calcâneo ultrapassa o nível da faceta articular subtalar posterior através da confecção de duas linhas paralelas, uma de referência e outra passando pelo ponto mais posterior da articulação subtalar (figura 6). É considerado anormal (positivo), caracterizando a deformidade de Haglund, quando a projeção bursal da tuberosidade calcânea ultrapassa a linha da articulação subtalar posterior.
Figura 6: Radiografia da incidência em perfil mostrando a avaliação da deformidade de Haglund através da "parallel pitch line", que consiste na confecção de duas linhas paralelas, uma ao longo da superfície plantar do calcâneo (linha tracejada branca) e a outra através do ponto mais posterior da articulação subtalar posterior (linha tracejada amarela).
Ângulo de Fowler e Philip, formado pela interseção das linhas que tangencias a margem posterossuperior da projeção bursal do calcâneo e a margem inferior do corpo do calcâneo. Normalmente varia entre 45 a 70°, sendo anormal quando > 75°.
Figura 7: Radiografia da incidência em perfil mostrando a avaliação da deformidade de Haglund através do ângulo de Fowler e Philip, formado pela interseção da linha que tangencia a margem posterossuperior da projeção bursal do calcâneo (linha tracejada amarela) e a linha que tangencia a margem inferior do corpo do calcâneo (linha tracejada branca).
Ângulo de Chauveaus-Liet, que representa a diferença entre dois ângulos: o ângulo α , o ângulo de inclinação / verticalização do calcâneo (calcaneal pitch angle) e o ângulo β, o ângulo morfológico do calcâneo. Normalmente a diferença entre o ângulo α e o ângulo β (α – β ) é < 12°.
Figura 8: Radiografia da incidência em perfil mostrando a avaliação da deformidade de Haglund através do ângulo de Chauveaus-Liet, representado pela diferença entre o ângulo α , o ângulo de inclinação / verticalização do calcâneo (calcaneal pitch angle) formado pela interseção da linha que tangencia a margem inferior do corpo do calcâneo (linha tracejada branca), passando pelo tubérculo anterior e a tuberosidade medial, e a linha de base da superfície horizontal (linha branca), e o ângulo β, o ângulo morfológico do calcâneo, formado entre uma linha vertical tangenciando a margem mais posterior da tuberosidade calcânea (linha amarela) e uma linha unindo esse ponto mais posterior até o ápice da tuberosidade posterossuperior do calcâneo (linha tracejada amarela).
O ângulo BRINK (iniciais de Botchu-Reilly-Iyengar-Nischal-Kakarala) foi descrito recentemente por Nischal et al. utilizando também a radiografia do pé com carga em e, segundo os autores, seria mais simples e fácil de calcular e teria melhor concordância intra e interobservador em comparação com os demais ângulos. O ângulo BRINK seria o ângulo entre uma linha que passa pela margem superior do processo anterior do calcâneo e sua margem posterossuperior e o eixo da inclinação calcaneal (a linha que tangencia a margem inferior do calcâneo) (figura 9). Nos indivíduos normais ele costuma ser em torno de 20° e nos pacientes com deformidade de Haglund a partir de 25°.
O ângulo BRINK foi validado para a ressonância magnética por Jenko et al., mas o limite superior encontrado pelos autores foi inferior ao observado nas radiografias, usando como “cut-off” 17° (sensibilidade de 76.7% e especificidade de 73,3%).
Figura 9: Radiografia da incidência em perfil mostrando a avaliação da deformidade de Haglund através do ângulo BRINK o ângulo entre uma linha que passa pela margem superior do processo anterior do calcâneo e sua margem posterossuperior e o eixo da inclinação calcaneal (a linha que tangencia a margem inferior do calcâneo).
Os principais ângulos relacionados ao calcâneo estão na página NOTAS & MEDIDAS.
Outros achados radiográficos que costumam estar associados com a síndrome de Haglund seriam:
Entesófito / esporão posterior no calcâneo
Espessamento do tendão de Aquiles (espessura > 9 mm)
Apagamento da gordura do triângulo de Kager devido à bursite retrocalcânea
Convexidade das partes moles posteriores ao tendão de Aquiles devido a bursite retrocalcânea superficial
A ressonância magnética é reservada para os casos questionáveis e quando é necessário avaliar a extensão do processo inflamatório para definir melhor alguma conduta terapêutica mais específica. Na RM, além da detecção da deformidade de Haglund, é possível identificar:
Edema ósseo reacional (osteíte) no calcâneo
Bursite retrocalcânea e retroaquilea
Tendinopatia, peri e paratendinite do Aquiles
Roturas no tendão de Aquiles
A ultrassonografia também pode ser empregada na avaliação da tendinopatia do Aquiles e nas alterações inflamatórias adjacentes à sua inserção.
Diagnósticos diferenciais
Tendinopatia do Aquiles isolada
Bursite retrocalcânea isolada
Síndrome do osso trígono
Fratura por estresse do calcâneo
Fascite plantar
Condições reumatológicas, como espondiloartropatias soronegativas, gota e artrites reumatoide e psoriásica
Tratamento
O tratamento inicial é conservador, com modificação dos calçados, fisioterapia para reduzir a tensão no tendão de Aquiles e alívio dos sintomas inflamatórios com gelo local, anti-inflamatórios não esteroides e injeção local de corticoides nos casos refratários.
Nos casos não responsivos pode ser indicada a remoção da proeminência óssea da deformidade de Haglund (calcaneal ostectomia ou osteotomia).
As complicações pós-operatórias ocorrem em média em 12% dos casos de cirurgia aberta e 5% dos casos de cirurgia endoscópica e incluem parestesia transitória (4%), infecção superficial (3%), avulsão do tendão de Aquiles (0,4%), lesão nervosa (geralmente dos nervos calcaneal medial sensitivo e sural – 0,2 a 0,9% dos casos), rigidez do tornozelo, trombose venosa profunda (0,2%) e neuroma incisional. A cirurgia também pode não atingir o objetivo de alívio dos sintomas, permanecendo dor persistente.
Os pacientes com tendinopatia do Aquiles costumam apresentar pior resposta ao tratamento cirúrgico.
Leitura sugerida
Jenko N, Ariyaratne S, Azzopardi C, Iyengar KP, Prem H, Nischal N, Budair B, Botchu R. Radiological angle assessment of Haglund's deformity: validation on Magnetic Resonance Imaging. Foot (Edinb). 2024 Jun;59:102096. doi: 10.1016/j.foot.2024.102096. Epub 2024 Apr 12. PMID: 38626577.
Nakajima K. Insertional Achilles tendinopathy: A radiographic cross-sectional comparison between symptomatic and asymptomatic heel of 71 patients. Eur J Radiol Open. 2024 May 10;12:100568. doi: 10.1016/j.ejro.2024.100568. PMID: 38765668; PMCID: PMC11101900.
Pargeon M, Tjiattas-Saleski L. Haglund deformity of the posterior heel. J Osteopath Med. 2023 Apr 17;123(7):365-366. doi: 10.1515/jom-2023-0022. PMID: 37057603.
Nischal N, Chandra Lalita K, Iyengar KP, Reilly I, Botchu R. Angle of BRINK - a new way to measure Haglund's deformity. Skeletal Radiol. 2023 Feb;52(2):193-198. doi: 10.1007/s00256-022-04169-4. Epub 2022 Aug 31. PMID: 36044055.
Yuen WLP, Tan PT, Kon KKC. Surgical Treatment of Haglund's Deformity: A Systematic Review and Meta-Analysis. Cureus. 2022 Jul 31;14(7):e27500. doi: 10.7759/cureus.27500. PMID: 36060327; PMCID: PMC9424834.
Grambart ST, Lechner J, Wentz J. Differentiating Achilles Insertional Calcific Tendinosis and Haglund's Deformity. Clin Podiatr Med Surg. 2021 Apr;38(2):165-181. doi: 10.1016/j.cpm.2020.12.003. Epub 2021 Feb 13. PMID: 33745649.
Lughi M. Haglund's Syndrome: endoscopic or open treatment? Acta Biomed. 2020 May 30;91(4-S):167-171. doi: 10.23750/abm.v91i4-S.9576. PMID: 32555092; PMCID: PMC7944823.
Vaishya R, Agarwal AK, Azizi AT, Vijay V. Haglund's Syndrome: A Commonly Seen Mysterious Condition. Cureus. 2016 Oct 7;8(10):e820. doi: 10.7759/cureus.820. PMID: 27843738; PMCID: PMC5101401.
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