Paciente de 28 anos, do sexo masculino, apresentando instabilidade e luxação recidivante do ombro esquerdo após episódio de luxação traumática anterior em colisão durante jogo de futebol há 5 anos. Solicitado ressonância magnética (RM) e tomografia computadorizada (TC) do ombro esquerdo.
Figura 1 (a-c): Imagens tomográficas do ombro esquerdo no plano coronal, reconstrução 3D (1a), MPR (1b) e MIP (1c).
Figura 2 (a-b): Imagens de RM no plano coronal na ponderação T2 com supressão de gordura (SG) passando pela porção central (2a) e mais posterior (2b) da cabeça umeral.
Figura 3 (a-c): Imagens de RM no plano transversal de superior (3a) para inferior (3b) na ponderação T2 com supressão de gordura (SG).
Figura 4 (a-c): Imagens tomográficas de reconstrução MPR no plano transversal de superior (4a) para inferior (4c).
Figura 5 (a-c): Imagens tomográficas de reconstrução 3D no plano sagital (5a), com pequena inclinação para visão superior (5b) e com visão posterossuperior após retirada da escápula e processo coracoide (5c).
Figura 6 (a-b): Imagens de RM no plano sagital da cabeça umeral nas ponderações DP SG (6a) e T1 (6b).
Figura 7 (a-d): Imagens tomográficas com reconstrução 3D da escápula em perfil (7a) e com a técnica MPR do úmero (7b) e no nível da glenoide (7c e 7d)
Figura 8 (a-b): Imagens de RM no plano sagital da glenoide nas ponderações DP SG (8a) e T1 (8b).
Descrição dos achados
Figura 1 (a-c’): Imagens tomográficas do ombro esquerdo no plano coronal, reconstrução 3D (1a), MPR (1b) e MIP (1c’) mostrando depressão cortical (lesão de Hill-Sachs) na margem posterossuperior da cabeça umeral (setas) medialmente ao “footprint” do supraespinal (asterisco).
Figura 2 (a-b’): Imagens de RM no plano coronal na ponderação T2 com supressão de gordura (SG) passando pela porção central (2a) e mais posterior (2b) da cabeça umeral não demonstra bem o defeito posterossuperior na cabeça umeral (seta), que é apenas tangenciado.
Figura 3 (a-c’): Imagens de RM no plano transversal de superior (3a’) para inferior (3b’) na ponderação T2 com supressão de gordura (SG) mostrando depressão cortical (lesão de Hill-Sachs) na margem posterossuperior da cabeça umeral (seta amarela), que não deve ser confundida com a depressão normal que ocorre medialmente à inserção do tendão infraespinal (setas brancas).
Figura 4 (a-c’): Imagens tomográficas de reconstrução MPR no plano transversal de superior (4a’) para inferior (4c’) mostrando depressão cortical (lesão de Hill-Sachs) na margem posterossuperior da cabeça umeral (seta amarela) e a depressão normal que ocorre medialmente à inserção do tendão infraespinal (setas brancas). Na imagem mais inferior é possível notar pequeno fragmento ósseo (seta vermelha) adjacente à margem anterior da glenoide.
Figura 5 (a-c’): Imagens tomográficas de reconstrução 3D no plano sagital (5a’), com pequena inclinação para visão superior (5b’) e com visão posterossuperior após retirada da escápula e processo coracoide (5c’) mostrando a lesão de Hill-Sachs na margem posterossuperior da cabeça umeral (setas) medialmente ao “footprint” do supraespinal (asteriscos).
Figura 6 (a-b): Imagens de RM no plano sagital da cabeça umeral nas ponderações DP SG (6a’) e T1 (6b’) mostrando a lesão de Hill-Sachs na margem posterossuperior da cabeça umeral (setas).
Figura 7 (a-d): Imagens tomográficas com reconstrução 3D da escápula em perfil (7a’) e com a técnica MPR do úmero (7b’) e no nível da glenoide (7c e 7d) mostrando a lesão de Hill-Sachs na margem posterossuperior da cabeça umeral (seta amarela) e o pequeno fragmento ósseo (setas vermelhas) adjacente à margem anterior da glenoide, que se encontra retificada (setas brancas).
Figura 8 (a-b): Imagens de RM no plano sagital da glenoide nas ponderações DP SG (8a’) e T1 (8b’) mostrando a retificação da margem anterior da glenoide (setas brancas). O pequeno fragmento ósseo identificado na TC não tem expressão na RM.
Discussão
A articulação glenoumeral é considerada do tipo “bola e soquete” e é a articulação com o maior arco de movimento, o que por si só já acarreta um certo grau de instabilidade natural, fazendo com que seja a articulação com maior incidência de deslocamento em adultos. Sua estabilidade é mantida através de estabilizadores dinâmicos (músculos e tendões em volta do ombro, incluindo o manguito rotador) e estabilizadores estáticos (anatomia articular, cápsula, ligamentos glenoumerais e o labrum glenoidal).
A luxação glenoumeral pode ser:
Anterior
Posterior
Multidirecional
A principal causa de luxação glenoumeral é traumática, sendo anterior em 90% dos casos, embora possa haver instabilidade glenoumeral sem história de deslocamento franco, como nos casos de microtraumas repetitivos em atletas de arremesso que causam sobrecarga no complexo capsuloligamentar anteroinferior, resultando em subluxação mesmo com a manutenção do contato glenoumeral.
Os pacientes estão em risco de deslocamento glenoumeral anterior quando o braço se encontra a 90° de abdução com rotação externa máxima do ombro (figura 9). Essa posição estressa a cápsula articular anteroinferior e a banda anterior do ligamento glenoumeral que funcionam como um dos principais estabilizadores estáticos do ombro. Quando a força aplicada excede a força de resistência do complexo capsulolabroligamentar anteroinferior ele rompe e há subluxação ou luxação da articulação glenoumeral. É uma situação muito comum na medicina do esporte, acometendo principalmente homens jovens ativos (idade inferior a 30 anos em mais da metade dos casos) que praticam esportes de contato ou arremesso, mas pode ocorrer em acidentes automobilísticos e outros tipos de colisão, como acidentes de esqui, e em pacientes mais velhos com traumatismos de baixa energia, como na queda da própria altura ou em escadas.
Após o primeiro episódio de luxação anterior traumática a chance de instabilidade residual do ombro vai depender de vários fatores, como mecanismo do trauma, magnitude das forças aplicadas e das lesões adicionais. Estudos biomecânicos demonstraram que as lesões que ocorrem após o primeiro episódio de luxação traumática alteram a biomecânica normal da articulação, o que aumenta o risco de instabilidade recorrente, predispondo a novas luxações.
Os fatores de risco para instabilidade recorrente incluem:
Esportes de contato e de arremesso
Pacientes mais jovens
Hipermobilidade articular
Episódios prévios de luxação
O risco de instabilidade recorrente é estimado em cerca de 72 a 100% nos pacientes com idade inferior a 20 anos e de 70 a 82% nos pacientes com idade entre 20 e 30 anos. Lesões concomitantes do manguito rotador e desinserção umeral do ligamento glenoumeral também contribuem para a instabilidade recorrente.
Na luxação glenoumeral anterior o úmero se desloca anteroinferiormente, permitindo que a margem posterolateral da cabeça umeral se choque com a margem anteroinferior da glenoide. Com isso, pode haver uma fratura compressiva posterior na cabeça umeral, conhecida como lesão de Hill-Sachs, e destacamento labral ou ósseo na margem anteroinferior da glenoide, conhecido como lesão de Bankart no caso da lesão labral isolada e lesão de Bankart óssea quando tem fratura na glenoide (figura 10).
Figura 10 (a-b): Radiografias do ombro na incidência anteroposterior (AP) de outro paciente que apresentou luxação glenoumeral anterior após choque com outro jogador em partida de futebol e que precisou ser reduzida sob sedação. Na radiografia obtida antes da redução (10a) podemos ver o úmero deslocado inferiormente, com a margem posterior da cabeça umeral em contato com a margem inferior da glenoide (seta branca). Após a redução (10b, com mesma imagem magnificada ao lado) vemos os sinais indiretos de que houve luxação anterior: a lesão de Hill-Sachs caracterizada por depressão cortical na cabeça umeral secundária à impactação (seta amarela) e lesão de Bankart óssea, com pequeno fragmento destacado adjacente à glenoide (seta vermelha).
A lesão de Bankart, definida como avulsão do complexo capsulolabral anteroinferior ocorre em até 85% dos casos de luxação anterior traumática. A lesão capsulolabral nem sempre fica restrita à porção anteroinferior, podendo se estender superiormente, inferiormente e até mesmo ser circunferencial. Pode também coexistir com avulsão umeral do ligamento glenoumeral inferior (lesão HAGL, do inglês “Humeral Avulsion of the Glenohumeral Ligament”).
Mais de 90% dos pacientes submetidos a tratamento artroscópico para instabilidade recorrente apresentam algum tipo de defeito ósseo, seja na glenoide (lesão de Bankart óssea) e/ou na cabeça umeral (lesão de Hill-Sachs). As subluxações ou deslocamentos repetitivos podem erodir a margem anterior da glenoide, resultando em perda óssea, o que contribui para o ciclo de luxação recorrente com aumento progressivo da perda óssea e maior instabilidade. Por isso, é importante a distinção entre as diferentes formas de defeito ósseo na glenoide relacionados à luxação glenoumeral anterior traumática (figura 11).
Figura 11: Representação esquemática da glenoide no plano sagital mostrando os tipos de defeito ósseo e a perda óssea: a glenoide normal tem aspecto arredondado nos terços inferiores. Na lesão de Bankart óssea há uma fratura na margem anterior da glenoide e o fragmento pode ficar in situ e consolidar, pode permanecer destacado e sofre deslocamento, pode fragmentar e com a cronicidade da instabilidade há o desgasta da margem anterior da glenoide configurando perda óssea.
No paciente do caso do mês há lesão de Bankart óssea com pequeno fragmento adjacente, provavelmente remanescente ou fragmentação de fragmento maior prévio, associado a desgaste com perda óssea anterior na glenoide, cujo defeito é bem maior que o fragmento ósseo e pode ser mensurado tanto pela área quanto pelo diâmetro da glenoide (figura 12).
Figura 12 (a-c): Mesma imagem tomográfica no plano sagital (perfil da escápula) que permite visão frontal da glenoide mostrando a área normal dos terços inferiores da glenoide (círculo tracejado branco), com o pequeno fragmento adjacente (seta vermelha em 12a), bem menor que a área do defeito ósseo em vermelho (12b). Para o cálculo da perda óssea, pode ser usada a regra de 3 onde a área normal do (círculo tracejado branco representaria 100% da área da glenoide e a área em vermelho representaria o % da perda óssea. Em 12 c representação esquemática mostrando o mesmo cálculo, só que considerando 100% o diâmetro anteroposterior da glenoide normal (linha D) e o diâmetro anteroposterior do defeito (linha d) seria o % da perda óssea.
A lesão de Hill-Sachs está presente em mais de 2/3 dos episódios de luxação inicial e chega a praticamente 100% dos casos de luxação recidivante. Quanto mais larga, inferior e medializada é a lesão de Hill-Sachs maior a correlação com instabilidade recorrente. O defeito de Hill-Sachs pode ser mensurado nos 3 planos de forma a obtermos a extensão craniocaudal, a profundidade e o diâmetro médio-lateral (figura 13).
Figura 13 (a-d): Reconstrução tomográfica 3D de outro paciente mostrando a lesão de Hill-Sachs (setas amarelas) medialmente ao “footprint” (asteriscos) nos planos sagital (13a) e coronal posterior (13b) e imagens de RM no plano sagital na ponderação T1 (13c) e transversal na ponderação T2 SG (13d) mostrando que a cabeça umeral também pode ser considerada esférica (círculos tracejados brancos) como referência para a mensuração da sua extensão craniocaudal (linha amarela), diâmetro médio-lateral (figura (linha vermelha) e profundidade (linha azul).
Nas últimas décadas os defeitos ósseos relacionados à luxação glenoumeral traumática passaram a ser avaliados em conjunto e dentro do conceito dinâmico do "track" da glenoide (“glenoid track”).
O conceito de “glenoid track” surgiu em 2007 com Yamamoto et al. quando foi descrita a mensuração da perda óssea da glenoide e sua relação com o tamanho da lesão de Hill-Sachs, o que poderia ser usado para identificar as lesões de Hill-Sachs clinicamente relevantes e como um preditor de luxação recorrente e de falência do tratamento artroscópico para correção da lesão de Bankart. Desde então, as perdas ósseas na glenoide e na cabeça umeral, denominadas de “perda óssea bipolar”, passaram a ser analisadas dentro do contexto do “glenoid track”.
"Track" da glenoide (GT, do inglês “glenoid-track") é a zona de contato entre a cabeça umeral e a glenoide durante a movimentação do ombro da posição neutra até a abdução, extensão e rotação externa. Durante esse movimento o contato da glenoide passa da superfície articular inferomedial para a superfície articular superolateral da cabeça umeral. Quando a estrutura óssea da cabeça umeral e da glenoide está intacta, o "track" funciona como um trilho durante o movimento articular (figura 14).
Figura 14 (a-b): Reconstrução tomográfica 3D ilustrando o conceito do “glenoid track”, que representa a zona de contato entre a cabeça umeral e a glenoide durante a abdução, extensão e rotação externa, onde o “track”, representado pelo espaço entre as linhas tracejadas brancas, funciona como um trilho durante o movimento articular. Com a glenoide intacta ou com pouca perda óssea (14a), a largura do “track” (seta dupla branca) é maior e a lesão de Hill-Sachs fica “dentro do trilho” (on-track). Já nos casos onde há perda óssea na glenoide mais significativa (seta vermelha em 14b), onde o “track” fica mais estreito (seta dupla vermelha), a lesão de Hill-Sachs pode ficar “fora do trilho” (off-track).
O contato entre as margens ósseas corresponde a 83% do diâmetro anteroposterior da glenoide (figura 15).
Figura 15: Ilustração representando a relação da articulação glenoumeral durante a abdução e rotação externa, onde o contato entre a cabeça umeral e a glenoide não é de 100%, mas sim de 83% do diâmetro anteroposterior da glenoide (seta dupla). Modificado de Arthroscopy: The Journal of Arthroscopic and Related Surgery, Vol 30, 2014.
Portanto, o "track" normal da glenoide (GT) pode ser representado pela fórmula GT = (D x 0,83), onde D é o diâmetro da porção da glenoide que se encaixa em um círculo. Quando há defeito ósseo na glenoide, tanto pela fratura com fragmento destacado quanto pela perda óssea secundária ao desgaste dos episódios recorrentes de luxação, defeito ósseo na glenoide diminui o “track” e, nesse caso, a fórmula passaria a ser GT = (D x 0,83) – d, representando o "track" normal de 83% do diâmetro anteroposterior da glenoide, com a subtração do diâmetro da perda óssea (d), já que o defeito diminui o “track” glenoidal (figura 16).
Figura 16: Representação esquemática do cálculo do “track” glenoidal, onde D seria o diâmetro anteroposterior da glenoide normal, que deve ser multiplicado por 0,83 (representando o % de contato glenoumeral). No caso de perda óssea na glenoide, o diâmetro anteroposterior da perda (d) deve ser subrtaído do “track” glenoidal normal, com a fórmula passando a ser GT = (D x 0,83) – d. O asterisco representa a lesão de Hill-Sachs.
Um dado importante é que podemos encontrar na literatura tanto a fórmula GT = (D x 0,83) – d (a mais utilizada), quanto a fórmula GT = 0,83 x (D – d), mas os resultados são diferentes, com a primeira fornecendo valores um pouco menores em comparação com a segunda. Por exemplo, em uma glenoide com 30 mm de diâmetro normal apresentando defeito anterior de 6 mm, pela primeira fórmula o GT seria de 18,9 mm e pela segunda fórmula de 19,9 mm.
Essa redução do "track" da glenoide aumenta o risco do “engaging” (encaixe da lesão de Hill-Sachs na borda anterior da glenoide durante movimento de abdução com rotação lateral, com a lesão de Hill-Sachs ultrapassando o defeito ósseo na glenoide), o que acarreta instabilidade, porque essa posição estaria fora do “track” fisiológico da glenoide, e também falência do reparo artroscópico isolado da lesão de Bankart (figura 17).
Figura 17: Representação esquemática da articulação glenoumeral em abdução e rotação externa mostrando o “enganging”: encaixe da lesão de Hill-Sachs na borda anterior da glenoide, situação que pode ocorrer quando o defeito ósseo na cabeça umeral estaria fora do “track” fisiológico da glenoide.
A partir daí, surgiram os conceitos de lesão "on-track" e "off-track", referentes ao maior risco de “engaging” e, portanto, pior prognóstico e necessidade de correção do defeito ósseo.
Os parâmetros para determinar se uma lesão é "on-track" ou "off-track" são a largura do defeito ósseo da glenoide (GT, visto em detalhes na figura 17) e o intervalo da lesão de Hill-Sachs (HSI). O intervalo do Hill-Sachs (HSI, do inglês Hill-Sachs Interval) é a distância da margem medial da lesão de Hill-Sachs até a inserção do tendão infraespinhal no plano axial (figura 18).
Figura 18: Representação esquemática da articulação glenoumeral no plano transversal no nível da lesão de Hill-Sachs e da inserção do tendão infraespinal. À esquerda o ombro normal, no centro a lesão de Hill-Sachs na cabeça umeral (asterisco) e à direita a mensuração do intervalo de Hill-Sachs (HSI) no eixo médio-lateral (linha vermelha).
Muitas vezes é identificada uma pequena ponte óssea normal entre o defeito ósseo da lesão de Hill-Sachs e a inserção tendínea, que é incluída na medida pela maioria dos autores (figura 19).
Figura 19: Mesma imagem de RM bo plano transversal na ponderação T2 SG de outro paciente mostrando o defeito da lesão de Hill-Sachs (asterisco) e a inserção do tendão infraespinal (seta branca), com a medida do intervalo de Hill-Sachs incluindo desde a extremidade mais medial do defeito até a inserção tendínea, mesmo se tiver uma pequena ponte óssea entre o defeito e a inserção tendínea.
Se a largura da lesão de Hill-Sachs (HSI) excede o tamanho do "track" da glenoide (GT), a lesão seria considerada "off-track", já se o HSI for menor que o GT a lesão seria considerada "on-track". Ou seja, as lesões de Hill-Sachs mais largas que o "track" da glenoide são as que apresentam maior chance de “engaging” por conseguirem ultrapassar o defeito ósseo.
Mas, deve ser levado em consideração também a forma da lesão de Hill-Sachs: as lesões mais mediais e inferiores, com maior largura e maior área de perda óssea estão associadas a pior prognóstico (figura 20).
Figura 20 (a-b): Ilustrações do úmero proximal no plano coronal posterior mostrando em vermelho diferentes tipos de lesão de Hill-Sachs, uma on-track sendo (20a) e outra off-track (20b). Modificado de https://radsource.us/off-track-shoulder-lesions/.
Estudos mais recentes identificaram que lesões "on-track" com pequena distância de deslocamento (DTD), do inglês distances-to-dislocation, seriam consideradas como lesões “quase track” (“near-track”), o que também predisporia a instabilidade recorrente. Esse conceito foi introduzido por Li et al., que considera o “track” da glenoide uma variável contínua e não um conceito binário de só "on-track" ou "off-track", onde a medida em que o "track" da glenoide diminui e a lesão de Hill-Sachs aumenta, a DTD diminui.
DTD (distances-to-dislocation) – distância da margem medial da lesão de Hill-Sachs até a margem medial do "track" da glenoide, ou seja, DTD = GT - HSI.
Nas lesões "off-track" essa distância seria zero e nas lesões "on-track" seria maior que zero, porém trabalhos demonstraram que o risco de recorrência da instabilidade aumenta exponencialmente quando essa distância é < 10 mm e, quando < 8 mm, pode ser um indicativo de falência do reparo artroscópico isolado da lesão de Bankart.
E estudos também demonstraram que em indivíduos que praticam esportes de colisão o risco de recorrência permanece grande mesmo quando o valor da DTD permanece alto: mesmo com DTD de 24 mm o índice de falência do tratamento foi superior a 12%.
No caso desse paciente, temos as seguintes mensurações (figuras 21 e 22):
Figura 21 (a-c): Imagens de RM no plano sagital na ponderação T1 (21a) mostrando a medida no eixo craniocaudal e no plano transversal na ponderação T2 SG mostrando a medida no eixo médio-lateral (21b) e a profundidade (21c) da lesão de Hill-Sachs.
Figura 22 (a-b): Imagens de RM no plano sagital na ponderação T1 mostrando o diâmetro anteroposterior normal da glenoide (22a) e o diâmetro anteroposterior do defeito ósseo na margem anterior da glenoide (22b).
Lesão de Hill-Sachs: 2,2 cm de extensão craniocaudal, 1,8 cm no eixo médio-lateral e 0,6 cm de profundidade.
Diâmetro anteroposterior da glenoide (D): 2,8 cm.
Diâmetro anteroposterior do defeito da glenoide (d): 0,7 cm.
Perda óssea estimada em 25%.
Track da glenoide se fosse normal: GT = (D x 0,83), no caso (2,8 x 0,83) = 2,3 cm
Track da glenoide: GT = (D x 0,83) – d, no caso (2,8 x 0,83) x 0,7 = 1,6 cm.
Intervalo de Hill-Sachs (HSI): 1,8 cm.
Nesse caso a largura da lesão de Hill-Sachs (HSI = 1,8 cm) excede o tamanho do "track" da glenoide (GT = 1,6 cm), e a lesão seria considerada "off-track". Usando como parâmetro o DTD = (GT – HSI), no caso 1,6 – 1,8 cm, a lesão também seria considerada "off-track" por ser menos que zero.
Tratamento
O tratamento da instabilidade glenoumeral pode ser conservador dependendo dos fatores de risco do paciente, embora na maioria dos casos seja preconizado o tratamento cirúrgico, principalmente no caso de atletas jovens.
Embora não exista consenso em relação ao tratamento após o primeiro episódio isolado de luxação anterior traumática, o risco de instabilidade recorrente tem levado a preconização de cirurgias mais precoces com o objetivo de minimizar o risco de recorrência e maximizar a volta às atividades esportivas.
Tradicionalmente, o tratamento inicial na maioria dos casos é a correção da lesão de Bankart por via artroscópica, com fixação do complexo labroligamentar anteroinferior, mas nas últimas décadas os cirurgiões têm cada vez mais reconhecido a importância das lesões ósseas, em especial a perda óssea anterior na glenoide, uma vez que a taxa de recorrência após tratamento cirúrgico sem correção do defeito ósseo pode chegar a até 18% dos casos dos atletas de contato com luxação recidivante. Por isso tem sido preconizado procedimentos mais invasivos, como enxerto ósseo por transferência do processo coracoide (cirurgia de Latarjet e variantes) ou outros autoenxertos para corrigir o defeito ósseo na glenoide e procedimento de remplissage para correção da lesão de Hill-Sachs.
O conceito de perda óssea critica tem sofrido modificações na literatura.
Historicamente, perda óssea crítica na glenoide, que servia como parâmetro de corte para definir a necessidade de tratamento cirúrgico com correção do defeito ósseo, era aquela maior que 20 a 25%, situação em que apenas o reparo artroscópico da lesão de Bankart estava associado a níveis inaceitáveis de recorrência. Porém, trabalhos mais recentes passaram a considerar que perdas subcríticas (entre 10 e 20%), cujo tratamento ainda se mantém controverso, também podem estar associadas a pior prognóstico, com autores preconizando correção cirúrgica para defeitos ósseos menores, como em torno de 13%.
Leitura sugerida
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