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Doença de Legg-Calvé-Perthes

Patrícia Martins e Souza - Fevereiro de 2022

(caso cedido pela Dra. Sabrina Veras)


Criança de 5 anos, sexo masculino, com dor no quadril esquerdo. Solicitadas radiografias (RX) da bacia nas incidências anteroposterior AP) e de Loewenstein (posição de rã) e, posteriormente, ressonância magnética (RM) do quadril esquerdo:


Figura 1 (a-b): Radiografias da bacia na incidência AP (1a) e de Loewenstein (1b).


Figura 2 (a-f): Imagens de RM no plano coronal nas ponderações DP com supressão de gordura à esquerda e T1 à direita.



Figura 3 (a-h): Imagens de RM no plano transversal nas ponderações DP com supressão de gordura à esquerda e T1 à direita.


Figura 4 (a-c): Imagens de RM no plano sagital na ponderação DP com supressão de gordura no plano do eixo longo do colo femoral. À esquerda imagem localizadora mostrando a angulação e o nível de cada imagem (linhas amarelas).


Figura 5 (a-c): Imagens de RM no plano sagital do quadril na ponderação DP com supressão de gordura. À esquerda imagem localizadora mostrando o nível de cada imagem (linhas amarelas).



Descrição dos achados

Figura 1 (a-b)’: Radiografias da bacia na incidência AP (1a’) e de Loewenstein (1b’) mostrando a epífise femoral esquerda com dimensões reduzidas e aspecto fragmentado (setas brancas) secundária à isquemia. Note que há aumento do espaço articular coxofemoral, sobretudo na porção medial (setas azuis), e deformidade do colo femoral, que se encontra mais encurtado e alargado em comparação com o contralateral (setas vermelhas).


Figura 2 (a-f)’: Imagens de RM no plano coronal nas ponderações DP com supressão de gordura à esquerda e T1 à direita mostrando a epífise femoral com dimensões reduzidas e aspecto fragmentado (setas brancas), achado melhor identificado na ponderação T1, e a deformidade do colo femoral, que se encontra encurtado e alargado. O aumento do espaço articular coxofemoral é difícil de ser identificado sem o estudo contralateral.



Figura 3 (a-h)’: Imagens de RM no plano transversal nas ponderações DP com supressão de gordura à esquerda e T1 à direita mostrando o alargamento e encurtamento colo femoral, e a epífise femoral (setas brancas).


Figura 4 (a-c)’: Imagens de RM no plano sagital na ponderação DP com supressão de gordura no plano do eixo longo do colo femoral mostrando a epífise femoral (setas brancas), que apesar da fragmentação mantém a esfericidade, e o colo femoral (setas vermelhas). À esquerda imagem localizadora mostrando a angulação e o nível de cada imagem (linhas amarelas).

Figura 5 (a-c)’: Imagens de RM no plano sagital do quadril na ponderação DP com supressão de gordura mostrando a epífise femoral (setas brancas). À esquerda imagem localizadora mostrando o nível de cada imagem (linhas amarelas).



Discussão


A doença de Legg-Calvé-Perthes ou doença de Perthes é o epônimo da necrose avascular idiopática juvenil da cabeça femoral. Foi descrita individualmente por três cirurgiões em 1910: o americano Arthur Legg, que acreditava que a doença tivesse origem traumática, o francês Jacques Calvé, que considerava tratar-se de uma osteogênese anormal e o alemão Georg Perthes, que sugeria etiologia inflamatória, mas até hoje sua etologia ainda não está completamente elucidada, embora existam evidências de que o evento patogênico chave da doença de Legg-Calvé-Perthes seja a interrupção do aporte sanguíneo da cabeça femoral. Trabalhos mais recentes levantam a possibilidade de uma combinação de fatores inerentes ao paciente e ambientais, como susceptibilidade genética, mutação do colágeno tipo II, anormalidades na via do IGF-1 (fator de crescimento insulina-like), vasculopatias, coagulopatias, congestão venosa, fumo materno, sobrecarga mecânica e crianças hiperativas com microtraumas subclínicos na cabeça femoral, mas ainda não existe consenso.


Osteonecrose significa necrose (morte) do osso, sendo a necrose avascular a osteonecrose secundária à falta de aporte vascular ao osso, que pode ser causada por fratura, luxação ou ser idiopática. A doença de Legg-Calvé-Perthes seria a necrose avascular idiopática que ocorre na epífise imatura. É um diagnóstico de exclusão, devendo ser afastadas doenças sistêmicas e causas secundárias de necrose avascular, como uso de corticoides, vasculites, anemia falciforme, radioterapia ou cirurgia.


É uma doença rara, acometendo cerca de 1 a cada 1200 crianças na faixa etária de 2 a 14 anos (pico entre 4 a 8 anos), mas existem diferenças regionais em relação à sua incidência. É mais comum na raça branca e no sexo masculino (1 a cada 740 meninos) do que no sexo feminino (1 a cada 3700 meninas), com relação meninos:meninas estimada em 3 a 5:1.


Tipicamente é unilateral, mas pode ser bilateral em 10 a 20% dos casos, sendo que o acometimento bilateral geralmente não costuma ser simultâneo. No caso de acometimento bilateral, deve ser afastada displasia esquelética através de estudo radiográfico da coluna vertebral em perfil e incidência anteroposterior dos membros inferiores e dos ombros.


O quadro clínico é insidioso, podendo se apresentar apenas com discreta claudicação intermitente nas fases iniciais e dor que piora com a atividade física. É comum a dor insidiosa na região inguinal irradiada para o joelho, no trajeto sensitivo do nervo obturador, e a criança pode referir apenas dor na coxa ou no joelho, o que costuma retardar o diagnóstico. Em um estudo com 425 pacientes com doença de Legg-Calvé-Perthes, 50% das crianças referiram dor no quadril e na coxa, 18% na coxa e no joelho e 14% apenas no joelho. Ao exame físico costuma haver inicialmente limitação da abdução e da rotação interna devido à contratura dos adutores.


Por acometer o esqueleto em desenvolvimento, a doença de Legg-Calvé-Perthes apresenta algumas diferenças em comparação com a osteonecrose da cabeça femoral do adulto. A epífise imatura possui uma grande capacidade de remodelamento, o que pode corrigir as alterações causadas pela isquemia, principalmente nas crianças mais jovens.


Na criança, o centro de ossificação da epífise femoral está recoberto por cartilagem que apresenta 3 zonas distintas: a zona superficial, que tem propriedades semelhantes às da cartilagem articular do adulto e, abaixo dela, a cartilagem epifisária apresenta uma camada média e uma zona mais profunda mais fina (figura 6).


Figura 6: Representação esquemática do fêmur proximal no esqueleto imaturo. A cartilagem articular está representada em azul mais claro e cartilagem da epífise em azul mais escuro, com as camadas superficial, média e profunda.


Apenas a camada mais profunda da cartilagem é nutrida pela vascularização do osso subcondral, e é a camada que é desvitalizada na doença de Legg-Calvé-Perthes. As demais camadas mais superficiais são nutridas pelo líquido sinovial e continuam a proliferar e aumentar de espessura. Na camada média da cartilagem podem ocorrer dois tipos de alteração: áreas extremamente hipercelulares e áreas contendo matriz frouxa semelhante à fibrocartilagem, ambas apresentando propriedades distintas da cartilagem normal. A partir destas mudanças histoquímicas secundárias à isquemia ocorre uma sucessão de eventos: inicialmente ocorre uma parada na ossificação endocondral associada a necrose da camada mais profunda da cartilagem, que pode evoluir para a fratura subcondral ou separação da cartilagem com compressão do osso trabecular da epífise. As camadas superficiais, que recebem nutrição do líquido sinovial, continuam a crescer, e com a revascularização da epífise há restauração da ossificação endocondral e reabsorção do osso necrótico, porém de forma assimétrica, o que leva a deformidade e colapso da cabeça femoral (figura 7).



Figura 7: Representação esquemática das alterações histopatológicas da necrose avascular da cabeça femoral. Com a interrupção da vascularização para a epífise umeral ocorre uma parada na ossificação endocondral associada a necrose da camada mais profunda da cartilagem, fratura subcondral ou separação da cartilagem e compressão trabecular com compactação do osso necrótico, que leva deformidade epifisária. Com a revascularização da epífise há restauração assimétrica da ossificação endocondral, iniciando-se a partir da periferia da epífise, e reabsorção do osso necrótico, com progressão do colapso e deformidade da cabeça femoral. Modificado de Legg-Calvé-Perthes Disease, chapter 41, Harry Kim, em musculoskeletalkey.com.


A placa fisária também sofre alterações na doença de Legg-Calvé-Perthes, com formação de fendas preenchidas por debris e extravasamento sanguíneo, associadas a áreas de ossificação endocondral anormal na região metafisária, onde a matriz cartilaginosa prolifera, mas não calcifica.


Waldenström em 1922 descreveu fases ou estágios da doença de Legg-Calvé-Perthes que são utilizados até hoje na interpretação das imagens radiográficas. A duração de cada estágio é variável de um paciente para outro e ainda não está bem estabelecido o que determina a duração de cada fase ou o período total de atividade da doença de Legg-Calvé-Perthes, embora seja observado que os pacientes mais velhos tendem a apresentar duração mais longa em comparação com as crianças mais novas. Cada estágio apresenta características distintas e alguns trabalhos encontraram uma média aproximada da duração de cada fase:


Fase precoce (inicial), também conhecida como fase isquêmica, avascular, necrótica ou de condensação (estágio 1)


As radiografias geralmente são normais durante a fase mais precoce, principalmente nos primeiros 2 a 3 meses do início do quadro, podendo ser observada inicialmente discreta osteoporose epifisária e redução do tamanho da epífise isquêmica em comparação com o quadril contralateral secundária à redução do suprimento vascular que impede o crescimento normal da epífise.

Na fase inicial, que dura cerca de 6 a 8 meses em média, a comparação com o quadril contralateral é fundamental para a detecção desses achados, que costumam ser muito sutis. Nas fases iniciais o quadro clínico lembra o da sinovite transitória do quadril, com a claudicação predominando sobre a dor. Inicia-se na porção anterossuperior e há espessamento das trabéculas ósseas levando a aumento da densidade da epífise isquêmica (figura 8).


Figura 8: Radiografia AP da bacia de outro paciente mostrando esclerose da epífise femoral esquerda (seta branca) secundária a doença de Legg-Calvé-Perthes. Modificado de Acta Orthopaedica 2017; 88 (5): 522–529.


É nesta fase que pode surgir a fratura subcondral, identificada nas radiografias como uma radiolucência curvilínea paralela à superfície articular, achado conhecido como “sinal do crescente” ou “sinal de Caffey”, presente em cerca de 25 a 30% dos casos (figura 9).


Figura 9: Radiografia do quadril direito de outro paciente com 8 anos de idade na incidência de Loewenstein mostrando o sinal do crescente (seta amarela), indicando fratura subcondral secundária a doença de Legg-Calvé-Perthes. Modificado de BMJ (online) 334(7605):1216-7.


Salter e Thompson classificam a extensão da fratura subcondral nas radiografias em relação ao acometimento ser superior ou inferior a 50% da cabeça femoral, que costuma ser mais bem identificada na incidência de Loewenstein. Entretanto, essa classificação tem sido abandonada porque a fratura subcondral só é identificada em uma minoria dos pacientes e a concordância intra e interobservador é baixa.


Nesta fase pode haver também aumento do espaço articular coxofemoral, principalmente na porção medial da articulação, conforme visto no caso deste mês, que alguns autores atribuem à sinovite com derrame articular, achado praticamente universal na doença de Legg-Calvé-Perthes, enquanto outros à hipertrofia das cartilagens e/ou à redução no tamanho da epífise femoral. A limitação da mobilidade provocada pela sinovite e pela irritação do quadril na fase inicial leva ao espasmo dos adutores, o que pode provocar subluxação.

Outro achado que pode ser observado na fase inicial é a reação metafisária, onde surgem áreas radiolucentes simulando imagens císticas ao longo da fise, que fica com aspecto ondulado (figura 10).


Figura 10 (a-b): Radiografias da bacia de outro paciente nas incidências AP (10a) e de Loewenstein (10b) mostrando a reação metafisária, com a fise de aspecto ondulado (seta amarela) e imagens radioluscentes simulando cistos na metáfise femoral (setas brancas).


Estas alterações levam a deformidade progressiva do colo femoral, que tende a ficar mais largo e encurtado (veja figura 1 do caso deste mês, onde o colo femoral do lado acometido é mais largo e curto em comparação com o lado normal).



Fase de fragmentação ou de reabsorção (estágio 2)

A epífise fica mais heterogênea e com aspecto fragmentado, observando-se progressão da reação metafisária e da deformidade do colo femoral e maior alargamento do espaço articular, conforme observado nas imagens do paciente do caso deste mês. Costuma durar 1 ano em média, e é a fase em que os sintomas de dor e claudicação são mais acentuados. Pode haver deformidade acetabular, com extrusão lateral da cabeça femoral, o que piora o prognóstico, uma vez que o contato anormal da epífise com o teto acetabular predispõe a maior deformidade da cabeça femoral. A extrusão pode ser mensurada nas radiografias através do índice acetábulo/cabeça (IAC), que avalia a relação entre a cobertura acetabular e a largura da cabeça femoral convertida em percentual. Quando o índice é < 80% indica deslocamento inicial da cabeça femoral (figura 11).

Figura 11: Radiografia AP da bacia de outro paciente ilustrando a mensuração da extrusão lateral da cabeça femoral através do índice acetábulo/cabeça (IAC), onde a distância (seta dupla A) entre a margem medial da cabeça femoral (linha tracejada verde) e a margem lateral do acetábulo (linha tracejada branca) é dividida pela largura horizontal da cabeça femoral (seta dupla C), e convertida em percentual (IAC = A/C x 100). O normal é ser > 80%, conforme demonstrado no quadril normal à direita. No quadril esquerdo onde há fragmentação da cabeça femoral (seta branca) secundária à doença de Legg-Calvé-Perthes, note que a epífise femoral fragmentada encontra-se deslocada lateralmente em relação à margem lateral do acetábulo.


A avaliação da extrusão da cabeça femoral por RM tem a vantagem de mostrar a cobertura da cartilagem que não é visível nas radiografias. Nesse caso é calculado o índice acetábulo/cabeça cartilaginoso (IACC), que avalia a relação entre a cobertura acetabular e a largura da cabeça femoral convertida em percentual. Quando o índice é < 75% indica perda da contenção da cabeça femoral (figura 12).

Figura 12: Imagem de RM no plano coronal na ponderação T1 ilustrando a mensuração da extrusão lateral da cabeça femoral através do índice acetábulo/cabeça cartilaginoso (IACC), onde a distância (seta dupla D) entre a margem medial da cartilagem da cabeça femoral (linha tracejada laranja) e a margem lateral da cartilagem do acetábulo (linha tracejada azul) é dividida pela largura horizontal máxima da cabeça femoral incluindo a cartilagem (seta dupla CC), e convertida em percentual (IAC = D/CC x 100). O normal é ser > 75%.


Fase de reossificação, remodelamento ou reparativa (estágio 3)

Ocorre restauração progressiva da densidade óssea com reossificação da epífise isquêmica. Nesta fase a deformidade da cabeça femoral pode melhorar, piorar ou se manter inalterada, e os sintomas dolorosos tendem a diminuir. Quanto maior a contenção da cabeça femoral, ou seja, quanto menor a extrusão lateral, maior a tendência da epífise de manter a sua esfericidade (figura 13). Costuma durar em média de 3 a 5 anos, sendo que a ossificação prolongada costuma ter pior prognóstico.


Figura 13 (a-c): Radiografias AP da bacia do controle evolutivo do mesmo paciente da figura 8, mostrando a esclerose da epífise femoral esquerda (seta branca em 13a) secundária a doença de Legg-Calvé-Perthes. Após 8 meses (13b) nota-se fragmentação da cabeça femoral (seta laranja) e após 4 anos e 7 meses houve reparação da cabeça femoral (seta amarela em 13c), que apresenta dimensões um pouco menores associado a discreto alargamento do colo femoral em comparação com o fêmur contralateral. Modificado de Acta Orthopaedica 2017; 88 (5): 522–529.



Fase cicatrizada ou residual (estágio 4)

Neste estágio são observadas as alterações residuais do processo de reparação e a eventual deformidade sequelar do fêmur. A doença de Legg-Calvé-Perthes pode acarretar fechamento prematuro da placa fisária, causando encurtamento do colo do fêmur e hipercrescimento do trocânter. Com a deformidade da cabeça femoral pode haver deformidade secundária do acetábulo, sobretudo na porção lateral.


Foram descritos 4 padrões básicos de deformidade secundária à doença de Legg-Calvé-Perthes:


1. Fechamento prematuro da fise

Central – colo femoral encurtado e epífise arredondada, hipertrofia do trocânter e leve deformidade acetabular.

Lateral – cabeça femoral inclinada externamente, epífise ovalada e achatada em associação com deformidade acetabular em correspondência (acetábulo raso e obliquado) e hipertrofia do trocânter.


2. Formação irregular da cabeça femoral – ocorre como consequência do fechamento prematuro da fise ou pode ser iatrogênico secundário a tentativas inadequadas de contenção da cabeça femoral.


3. Coxa magna – aumento da epífise femoral proximal secundária à ossificação da cartilagem articular hipertrofiada e à reativação da placa fisária ao longo do colo femoral, que ocorre em conjunção com formação periosteal de novo osso no colo femoral (figura 14).



Figura 14: Radiografia AP da bacia de outro paciente ilustrando algumas alterações sequelares que costumam ocorrer nos casos de doença de Legg-Calvé-Perthes: a coxa magna, caracterizada por aumento das dimensões da epífise femoral (seta branca), que neste caso apresenta perda da esfericidade com pequena depressão cortical na porção superior associada a cistos subcondrais (seta azul), encurtamento e alargamento do colo femoral (seta vermelha) e deformidade acetabular (seta amarela). Compare com o quadril esquerdo normal.


4. Osteocondrite dissecante – ocorre em cerca de 3% dos pacientes com doença de Legg-Calvé-Perthes, sendo mais comum na doença de início tardio e com maior duração.


Além da idade, um fator determinante para o prognóstico é o grau de extensão do acometimento da cabeça femoral. Catterall, o primeiro autor que enfatizou essa relação em 1971, criou o conceito da “cabeça em risco”, onde estariam presentes 5 sinais (um deles acrescentado por Murphy et al. em 1978) na fase de fragmentação:

1. Lateralização da epífise femoral (mais importante), identificada pelos índices de extrusão já discutidos anteriormente. Os demais sinais têm importância consideravelmente menor.


2. Sinal de Gage ou “sinal da unha”, onde é observada uma radioluscência em “V” na incidência lateral do quadril representando a lise metaepifisária, semelhante a uma lesão em saca bocado (figura 15). Foi descrito originalmente por Courtney Gage, um radiologista britânico em 1933, como uma concavidade na margem superior do colo femoral como um possível sinal precoce da doença de Perthes. Existe alguma controvérsia em relação ao sinal descrito por Caterall em 1971, conhecido até hoje como sinal de Gage, mas que não seria exatamente a mesma descrição original de Gage. Entretanto, esse sinal atualmente é considerado até patognomônico de doença de Perthes, sendo um sinal que indica maior risco da cabeça femoral, embora a concordância inter e intraobservador não seja considerada muito boa.


Figura 15: Radiografia AP do quadril esquerdo de outro paciente mostrando o “sinal do Gage”, caracterizado por radioluscência na porção metaepifisária lateral do fêmur semelhante a uma lesão em saca bocado (seta amarela).



3. Reação metafisária difusa / “cistos” metafisários, conforme descrito anteriormente, achado acrescentado por Murphy et al. (veja figura 10).


4. Calcificação adjacente à margem lateral da epífise, que representa a calcificação da cartilagem epifisária extrusa (figura 16).

Figura 16: Radiografia AP do quadril esquerdo de outro paciente mostrando o “sinal do Gage”, caracterizado por radioluscência na porção metaepifisária lateral do fêmur semelhante a uma lesão em saca bocado (seta amarela).


5. Horizontalização da placa de crescimento (figura 17). Existem formas de quantificar a horizontalização da fise, como as descritas na avaliação da coxa vara, mas, na prática, não são utilizadas na avaliação da doença de Legg-Calvé-Perthes. Deve-se ter também atenção ao fato de que a posição da placa fisária se altera com a rotação do quadril.


Figura 17: Radiografia AP de outro paciente mostrando a presença de calcificação adjacente à margem lateral da epífise femoral (seta laranja), reação metafisária difusa com imagens radioluscentes de aspecto cístico (setas brancas) junto à placa de crescimento (seta verde), que se encontra horizontalizada.


Quando há deformidade da cabeça femoral, ela não é mais contida pelo acetábulo, e o eixo de rotação é desviado do centro da cabeça femoral para a margem lateral do acetábulo na abdução, demonstrado pela falência do movimento medial da porção superolateral da cabeça femoral, enquanto a porção inferomedial continua a se movimentar normalmente. Essa situação é conhecida como “hinge abduction”, ou “quadril em dobradiça” / “abdução em dobradiça”, onde o rebordo acetabular forma um sulco sobre a cabeça femoral subluxada, e a porção anterolateral da cartilagem da cabeça femoral cresce em demasia para fora do acetábulo, empurrando o labrum acetabular. Um sinal indicativo do “quadril em dobradiça” descrito por Kruse et al. é o alargamento do espaço articular coxofemoral medial > 2 mm em abdução, em associação com redução do espaço articular superolateral. Na tentativa de abdução, a porção extrusa da cabeça femoral colide com a borda lateral do acetábulo impedindo o movimento. A criança apresenta dor e bloqueio articular e o quadril pode evoluir para um quadro de adução progressiva devido a espasmo dos adutores, com encurtamento aparente do membro inferior. A artrografia dinâmica sob sedação (para aliviar a dor e relaxar a musculatura) é um método que pode ser utilizado em casos selecionados na detecção do “quadril em dobradiça” (figura 18).


Figura 18 (a-b): imagem de artrografia do quadril esquerdo de outro paciente na incidência AP (18a) e em abdução (18b) mostrando o “quadril em dobradiça”. Há lateralização da cabeça femoral (seta amarela) em relação ao acetábulo (seta branca), e em abdução a epífise não ultrapassa o complexo condrolabral (seta azul), que é deslocado superiormente. Modificado de J Pediatr Orthop. 2019 Feb;39(2):e95-e101.


Os pacientes com sequelas da doença de Legg-Calvé-Perthes podem ser assintomáticos ou apresentar claudicação residual e limitação da movimentação do quadril, além de terem maior risco de desenvolver osteoartrite na vida adulta. Diversas classificações foram criadas com o intuito de diferenciar os pacientes que respondem bem ao tratamento conservador dos que podem necessitar de procedimentos cirúrgicos, assim como aqueles que têm bom prognóstico independentemente da conduta escolhida daqueles com prognóstico desfavorável.



Classificações da doença de Legg-Calvé-Perthes


As classificações da doença de Legg-Calvé-Perthes levam em consideração:

  • As fases evolutivas da doença – classificação ou estágios de Waldenström, já discutido acima.

  • Prognóstico – classificações de Catteral e Herring.

  • Resultado final a longo prazo – classificação de Stulberg.

Catterall definiu 4 grupos baseado na localização e extensão do envolvimento cabeça femoral nas incidências radiográficas anteroposterior (AP) e de Loewenstein (“posição de rã”) da bacia durante a fase de fragmentação (quadro 1 e figura 19).


Quadro 1: Classificação de Catterall et al. da doença de Legg-Calvé-Perthes.


As limitações da classificação de Catterall são a dificuldade e baixa acurácia na avaliação das fases mais precoces da doença, antes da ocorrência de fragmentação da epífise, e a baixa concordância interobservador.


Herring et al. introduziram o conceito do “pilar”, em que a cabeça femoral seria dividida em 3 pilares: um pilar medial com ¼ da largura da cabeça, um pilar central maior, com 2/4 da largura da cabeça, e um pilar lateral com ¼ da largura da cabeça (figura 19).


Figura 19 (a-c): Mesma radiografia anteroposterior do quadril mostrando a divisão da epífise femoral em pilares. Na figura 9a a epífise femoral normal, em 9b a epífise foi dividida em 4 partes iguais e figura 9c mostrando que os pilares lateral (em vermelho) e medial (em laranja) representam cada um 1/4 da epífise e o pilar central (em amarelo) representa 2/4.


O acometimento do pilar lateral, considerado um suporte à carga sobre a porção central avascular da epífise, limitando seu colapso, é um dado importante para a evolução da doença de Legg-Calvé-Perthes. A classificação de Herring tornou-se popular por estimar a gravidade da doença e o prognóstico ao avaliar a altura do pilar lateral da cabeça femoral na incidência radiográfica anteroposterior da bacia durante a fase de fragmentação. A classificação original de 1992 descreveu 3 grupos, caracterizados pela ausência de acometimento do pilar lateral (grupo A), redução da altura do pilar lateral < 50% (grupo B) e > 50% (grupo C, que teria pior prognóstico). Em uma revisão da classificação em 2004, Herring e seu grupo introduziram o grupo B/C, onde a redução da altura do pilar lateral seria em torno de 50%, cujo prognóstico seria pior que o grupo B, mas melhor que o grupo C (quadro 2 e figura 20).


Quadro 2: Classificação de Herring et al. da doença de Legg-Calvé-Perthes.



Figura 20: Representação esquemática da classificação de Herring et al. da doença de Legg-Calvé-Perthes.


A desvantagem da classificação de Herring é também ser aplicável apenas na fase mais avançada da doença, quando já existe fragmentação da epífise e o tratamento já pode não ser tão eficiente em comparação com as fases mais precoces. A comparação com o quadril contralateral é extremamente útil na detecção da redução da altura da cabeça femoral, o que faz com que nos casos de doença bilateral a caracterização fique um pouco prejudicada.



Métodos de imagem na avaliação da doença de Legg-Calvé-Perthes


As radiografias são o exame de escolha na avaliação inicial, controle evolutivo e detecção das alterações residuais no quadril acometido. Entretanto, apesar das radiografias serem úteis na avaliação da progressão da doença, elas não tem a sensibilidade e especificidade necessárias para identificar as alterações vasculares que ocorrem na epífise femoral.


A artrografia quase não é mais solicitada atualmente, sendo reservada para casos selecionados em que há suspeita do “quadril em dobradiça”.


A ultrassonografia demonstra o derrame articular no quadril e pode identificar o espessamento da cartilagem articular da epífise, a cabeça do fêmur descoberta anterolateralmente e a deformação da epífise óssea, mas os achados costumam ser inespecíficos.


A tomografia computadorizada não costuma ser solicitada pela maior exposição à radiação e por não oferecer benefício significativo em comparação com as radiografias.


A cintilografia óssea com Tc 99, antes bastante utilizada no diagnóstico de doença de Legg-Calvé-Perthes, foi substituída pela ressonância magnética.

A ressonância magnética (RM) determina a extensão do osso infartado, a fratura subcondral em todos os quadris acometidos, delineia a epífise cartilaginosa e o grau de subluxação da cabeça femoral. Foi demonstrado por alguns autores que crianças com radiografias iniciais normais ou com achados sutis na fase inicial, que seriam classificadas como Catterall I, na RM com contraste venoso foi verificado que a extensão da isquemia pode ser bem maior, com acometimento de até 100% (figura 21).


Figura 21 (a-c): Imagens de outro paciente 2 meses após o início dos sintomas de doença de Legg-Calvé-Perthes, com radiografia AP da bacia (21a) mostrando leve redução com discreto amento da densidade da epífise femoral do lado acometido (demarcado pelo círculo vermelho). Na RM no plano coronal na ponderação T1 (21b) notam-se áreas de sinal reduzido na epífise femoral e na imagem após a administração venosa de contraste com subtração (21c) é evidenciado que há hipoperfusão de grande parte da epífise umeral. Modificado de PediatricRadiology 2013; volume 43, 1166–1173.


Embora ainda não esteja estabelecido se a detecção precoce de maior área de acometimento da RM em comparação com as radiografias tem papel prognóstico relevante, essa informação pode influenciar na orientação em relação às atividades físicas do paciente e maior limitação da sobrecarga sobre o quadril, que poderia não ser tão significativa apenas com a avaliação radiográfica. Outra indicação da RM seria o RX normal em pacientes sintomáticos e a exclusão de outras causas que podem justificar o quadro clínico. Porém, a faixa etária mais acometida na doença de Legg-Calvé-Perthes não costuma cooperar muito para a realização da ressonância magnética, muitas vezes precisando de sedação e equipe experiente, o que limita a sua utilização.


Os diagnósticos diferenciais são as demais causas de dor no quadril na infância:

  • Artrites

  • Sinovite transitória do quadril

  • Infecção

  • Epifisiólise

  • Osteocondrite dissecante

  • Displasia epifisária múltipla (tende a ser bilateral e simétrica com acometimento simultâneo e com o envolvimento de outras articulações além dos quadris)

  • Trauma

  • Tumores epifisários (osteoma osteoide, granuloma eosinofílico, osteoblastoma, condroblastoma e linfoma)

Nos casos de luxação traumática do quadril ou fraturas do colo femoral que levam a insulto isquêmico na cabeça femoral na infância, a necrose avascular tende a cicatrizar mais rapidamente, sem a evolução prolongada e em diferentes estágios, com fragmentação e reparo, observados na doença de Legg-Calvé-Perthes.


O prognóstico costuma ser favorável na maioria dos casos, sendo melhor quanto mais jovem for o paciente e menor a extensão da área isquêmica. Os principais fatores que pioram o prognóstico são:

  • Início da doença na criança com idade superior a 8-9 anos

  • Áreas isquêmicas maiores e com acometimento do pilar lateral

  • Extrusão anterolateral da cabeça femoral > 20% (há uma distribuição desigual de forças durante a sustentação de peso na parte da cabeça que está contida no acetábulo)

  • Subluxação superolateral da cabeça femoral (decorrente do esmagamento das trabéculas secundário à sobrecarga de peso, quebrando a linha de Shenton com deslocamento superior da cabeça femoral) Deformidade no fêmur e acetábulo

  • Fechamento precoce da placa fisária

  • Sexo feminino


Os casos com má evolução apresentam desenvolvimento epifisário anômalo e deformidade com perda da esfericidade e achatamento da cabeça femoral, coxa vara, fechamento prematuro da fise, discrepância do tamanho dos membros inferiores e osteoartrose secundária.

A classificação Stulberg, considerada referência na predição do prognóstico a longo prazo, foi criada a partir de um estudo multicêntrico que acompanhou 156 pacientes que receberam tratamento conservador por um período de 30 a 60 anos para tentar encontrar associação entre a evolução e a deformidade residual no acetábulo e cabeça femoral identificadas nas radiografias anteroposterior e lateral do quadril após a maturidade do esqueleto de pacientes que apresentaram doença de Legg-Calvé-Perthe, dividindo o quadril em 5 classes (quadro 3).


Quadro 3: Classificação de Stulberg et al. da doença de Legg-Calvé-Perthes.


A classificação de Stulberg, ao criar 3 subgrupos (congruência esférica, congruência não esférica e incongruência não esférica) destacou que a congruência coxofemoral é mais importante a longo prazo que a deformidade isolada da cabeça femoral. Outros autores também fizeram a correlação entre os subgrupos da classificação de Stulberg, a idade do início do quadro e a classificação de Herring com o prognóstico (quadro 4).


Quadro 4: Prognóstico comparando as classificações de Stulberg e Herring da doença de Legg-Calvé-Perthes.



Apesar de existir alguma controvérsia sobre a concordância interobservador e acurácia das diferentes classificações, essas informações, em especial a classificação de Herring e a idade do acometimento, costumam ser utilizadas como guia para a definição dos pacientes que merecem tratamento cirúrgico, conforme resumido no diagrama abaixo:




Tratamento


O tratamento conservador costuma dar resultado na maioria dos casos e cerca de 60% dos pacientes evoluem bem, mesmo sem tratamento.

Os objetivos principais dos tratamentos são manter a cabeça esférica (arco do movimento) e centrada (contenção).


Na fase inicial, a fase do quadril irritável, o objetivo é restaurar e manter o movimento concêntrico do quadril mediante instalação de tração, fisioterapia com movimentos passivos e ativos e tratamento sintomático da sinovite do quadril com anti-inflamatórios não hormonais.


Historicamente, as formas de tratamento mais utilizadas envolvem a eliminação da carga, porém a eliminação da carga por meio de repouso no leito ou aparelho não reduz efetivamente o estresse através da articulação, além de existir pouca adesão AP tratamento. A não ser na fase de irritação inicial, a retirada do apoio, na prática, não afeta o resultado final.

Para que ocorra o crescimento normal e a forma da cabeça seja preservada, a articulação do quadril deve manter o arco de movimento normal, portanto o objetivo principal deve ser a centralização da cabeça femoral e a recuperação da abdução e a rotação interna, que estão limitadas nos casos de subluxação do quadril. Uma vez recuperadas a abdução e a rotação interna, a radiografia deve mostrar a centralização da cabeça, que deve ser mantida. Nos casos do “quadril em dobradiça” é mais difícil reverter a subluxação.


O tratamento cirúrgico costuma ser empregado em cerca de 20% dos casos, e é importante o período decorrido entre o início da doença e a cirurgia. A centralização deve ser realizada quando a cabeça ainda estiver com a esfericidade preservada, o que faz com não seja aconselhável realizar cirurgia após oito meses do início da doença, pois, após esse período, a cabeça geralmente já está deformada e a cirurgia não é capaz de melhorar os resultados.


A osteotomia varizante foi o primeiro procedimento cirúrgico adotado com a finalidade de obter a centralização da cabeça femoral. Ela alivia o estresse sobre a articulação, facilitando a remodelagem da cabeça; no entanto, apresenta a desvantagem de provocar encurtamento. Quando realizada antes dos oito anos de idade, o varismo resultante da osteotomia sofre correção gradativa em um período aproximado de dois anos, o que não acontece acima dessa idade, resultando em encurtamento mais acentuado e definitivo, mas não existe consenso entre os cirurgiões.


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